domingo, 15 de fevereiro de 2015

ANTA BRANCA

ANTA BRANCA
Autor Luís Sevalho
      
     Numa noite escura, propícia para focar pacas e onças nas barrancas dos igarapés, dois caçadores do município de Limoeiro, “Manoel Zinho” e “Carmo”, saíram com destino ao igarapé do Maku, afluente do Rio Mocó, com o propósito de capturar antas no misterioso chupador do Caioé. Lá chegando, armaram o moitá à beira do chupador, sem nenhum remorso, ficando à espreita do maior animal selvagem da nossa região.
     Munido de um bom arsenal, os caçadores carregavam em suas capangas, fartos cartuchos carregados com bala palanqueta, produzidos por eles mesmos para aquela missão noturna. Espingarda na mão e o silêncio total faziam desses caçadores os heróis da floresta. De repente: thiaar, thiaar, fiiz, fiiz, fiiz, groãum, groãum.. -“la vem a anta”, falou Manoel Zinho em sussurros, percebendo o barulho vindo de um canamã. Ajeitou-se bem, sem um pingo de medo; engatilhou o pau-de-fogo com cartucho de bala, encostou a lanterna rente ao cano da espingarda, deixando para focar na hora de atirar. Deixou o “bicho” chegar mais perto; pois é tradição dos caçadores deixar a caça ficar à vontade no chupador para poder detoná-la com o tiro certeiro.
     Alguns minutos depois, piscou a lanterna, acompanhando ao foco de luz o torpedo de bala, matando um veado capoeira que ficou estirado lá mesmo. - “Desta vez não era ainda o boi da mata”, retrucou Manoel Zinho. Não tinha problema, pois ele estava contente com a morte do veado já que à noite tinha começado muito bem para eles. No entanto, tinha dúvidas se a preferida ainda viria; pois o cheiro de pólvora, uso de cigarro ou até mesmo o mal cheiro curtido na roupa do caçador faz os animais de grande porte desconfiarem do local desistindo de irem chupar lama.
     Mesmo assim, continuaram amoitados, no aguardo da caça mais esperada. Precisavam de muita carne salgada para distribuir no ajuri que iam fazer com vinte homens na derrubada do roçado. Não tinham pressa com a passagem daquela lúgubre noite. Manoel Zinho sabia que das suas caçadas em chupadores, nunca havia batido fofo, principalmente quando se tratava de caça as antas e veados no igarapé do Maku. Também nunca tinha ouvido falar que o lugar era de suspense para caçadores. Das vezes que ali se encontrou, chegou a abater várias antas por noite. Quando isso acontecia, o dia seguinte era de festa para a moçada do Limoeiro que tinham um único trabalho; carregar nas costas os pedaços do maior boi da mata, servindo de rancho o mês inteiro para toda a comunidade. E assim, sem desconfiarem de nada na íngreme floresta encontravam-se ali, cheios de calma e silêncio na ânsia de fazerem uma boa caçada.
Manoel Zinho percebeu de forma macabra que algo estranho se fazia presente naquele momento no chupador. Alguma coisa fez seu corpo arrepiá parecia um sexto sentido. Tentou focar e a lanterna não acendeu, deu um leve baque com o punho da mão na cabeça da lanterna, mas ela negava a acender. Não era possível entender o que estava acontecendo com ele e a lanterna. Estarrecido tentou meditar, porém seu corpo começava a se entregar ao fracasso. Sem ver nada, só premunição, seus cabelos começaram a tomar forma de arame retesos para cima, parecendo que estava vendo fantasma. Ainda para completar a dose, seu queixo tremia descontrolado sem o seu consentimento, fazendo barulho nos dentes igual bando de queixadas perdidos em tiroteios.
     Carmo percebeu logo a mudança de comportamento do sogro que parecia não se encontrar. Sem dúvidas, passou a mão na espingarda que já se encontrava engatilhada e se preparou para o pior. Neste difícil momento o caçador enervado, apertou o gatilho, rasgando o véu da noite com um tiro de bala que ensurdeceu a floresta. Procurou não se mexer e nem testar a lanterna de cinco elementos para ver o que iria acontecer. Pois sabia que quando se mexe com os espíritos da floresta, a reação é quase que imediata.
     O suspense foi aumentando quando de súbito, uma luz incandescente muito forte saiu em direção aos caçadores, ficando o lugar bem claro parecido com o dia. Uma chuva fantasma seguida de fortes turbulências cercou os caçadores, sendo que eles não enxergavam a tempestade; só percebiam que estava chovendo forte por todos os lados.
      Abismados pelo acontecido, os dois voltaram a olhar para o chupador, enxergando lá em baixo uma Anta Branca, parecia vestida de noiva, rodeada de animais; alguns muito feridos e outros que choravam a perda de seus filhotes, provavelmente mortos por caçadores impiedosos. A anta misteriosa tentava consolar a todos, acariciava-os tentando fechar os ferimentos com ganga impura. Manoel Zinho se mandou, enquanto que o Carmo, comovido pela dor dos animais, desceu do moitá, entalado de emoção tentou aproximar-se da aparente reunião, quando foi alvejado na cabeça por um ouriço de castanha, arremessado por um macaco barrigudo, levando o “piedoso“ caçador ao desmaio.
     Durante o sono em cama de folha podre com lama, Carmo pôde sonhar, vendo os animais rodeados em sua volta. Na conversa com eles recebeu recomendações ecológicas da Anta Branca que se apresentou como mãe do chupador, defensora de todos os animais. Solicitou a ele que levasse uma mensagem aos homens errantes, destruidores do presente e do futuro da humanidade e que falasse a todos os caçadores para respeitarem os animais e a natureza, porque eles têm o seu protetor natural. Em seguida afastaram-se dele dando uma boa lição de comportamento animal.
     Quando Carmo acordou, estava todo sujo de lama, cheirando à anta no meio da escuridão. Acendeu a lanterna que estava pendurada no pescoço, focou em direção ao chupador para ver se o veado ainda estava lá e não encontrou nada; nem o veado e nem o chupador; tudo desapareceu. Naquele lugar nasceram lindas árvores frutíferas e muitos buritizeiros. Certificou-se que algo muito estranho tinha acontecido com ele. Era como se fosse uma revelação e prometeu a si mesmo que se escapasse com vida, nunca mais faria mal algum à natureza. Chegando em casa preferiu não contar nada a família; pois sabia que se abrisse a boca ninguém acreditaria nessas histórias de caçador. Ainda ficou vários dias com febre alta, dor de cabeça e dores nos braços.
     Quando se recuperou da pancada do ouriço, Carmo se transformou num verdadeiro ambientalista e voltou novamente lá com uma placa e os seguintes dizeres: Área de Preservação Permanente Anta Branca

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